Educação em jogo

* Reportagem de Silvana Azevedo para a Revista Pátio Nº21 de junho/ 2014

Além de fazer bem à saúde, o esporte pode ajudar tanto nas relações sociais quanto no desenvolvimento de valores e da autoestima

Manuel Evaristo morava em uma casa de pau-a-pique coberta com palha de coqueiro no interior do Rio Grande do Norte. Dormia na rede e, para ajudar nas despesas, vendia cocada. Em uma corrida de rua, sem treino ou preparo físico, o garoto de 11 anos de pés descalços chamou a atenção de Magnólia Figueiredo, campeã olímpica potiguar de atletismo, que logo tratou de levá-lo para treinar profissionalmente em Natal. Manuel Evaristo cresceu, tornou-se campeão, foi medalhista brasileiro de atletismo e hoje, aos 49 anos, dedica-se a resgatar jovens das ruas de Brasília. “Se não fosse o esporte, eu sequer estaria vivo”, acredita o treinador, que faz pelos outros o que um dia alguém fez por ele.
À frente do Instituto Joaquim Cruz, Evaristo já treinou cerca de 250 atletas, mudou o destino de adolescentes que viviam na delinquência e vibra ao ver um garoto que andava armado hoje estudando e trabalhando. “O esporte é um simulacro, uma ótima analogia da vida”, analisa Renato Miranda, professor da Faculdade de Educação Física e Desportos da Universidade Federal de Juiz de Fora e consultor de atletas. Autor de dois livros sobre o desempenho humano através do esporte, ele afirma que a postura do educador é determinante, destacando o conhecimento, a autoridade, a educação e a autodisciplina, qualidades essenciais para a obtenção de bons resultados em qualquer matéria.

Ex-técnico de basquetebol e professor aposentado da USP, Dante De Rose Júnior aponta alguns ensinamentos que o educador pode aprender com o esporte. “Muitas vezes, o professor de sala de aula não dá abertura para o aluno se manifestar”, observa. “No esporte existe autoridade, mas exercer autoridade não significa ser autoritário. Vejo professores exigindo respeito quando, na verdade, tem de ser conquistado”, conclui.

Um jogo de equipe
Mestre em pedagogia do movimento humano pela Escola de Educação Física e Esporte da USP, Paula Korsakas explica que a prática esportiva pode auxiliar na educação porque está impregnada de valores, códigos éticos e morais. Porém, não se trata de uma relação automática, e sim de algo que se constrói ao longo da vida. “Se o esporte, de fato, tivesse a capacidade de educar por si só, teríamos apenas exemplos de cidadania entre os atletas, mas sabemos que não é bem assim”, alerta.

No papel de coordenadora do Programa de Desenvolvimento Humano pelo Esporte (PRODHE), do Centro de Práticas Esportivas da USP, Paula coloca em prática fundamentos baseados em estudos e pesquisas, os quais consistem no uso do esporte como ferramenta de aprendizagem e desenvolvimento da autoestima, com uma abordagem apoiada nos pilares da educação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO): aprender a conhecer, a fazer, a viver com os outros e a ser.

No PRODHE, uma iniciativa destinada a 120 alunos de 8 a 16 anos, os adolescentes têm autonomia para organizar torneios, assumir compromissos, controlar e justificar suas faltas. Existe um sistema concreto em que eles vivenciam as causas e consequências de boas e más condutas. “Tudo é vivido”, destaca a coordenadora. “Assim, construímos um sistema em que eles percebem a importância dos valores para a organização social”, explica Paula, que considera um erro da educação tradicional acreditar que o desenvolvimento da conduta e das relações sociais é construído a partir de discursos e lições de moral.

Em uma trajetória de 19 anos de trabalho, com parceria técnica do Instituto Ayrton Senna, o PROHDE tornou-se um centro de referência no tema, com papel estratégico de sistematizar, disseminar conhecimentos e formar educadores, fatores que levaram o programa a fazer parte da assessoria metodológica da Rede Esporte pela Mudança Social (REMS), uma organização que congrega mais de 50 instituições com o compromisso de trabalhar o esporte em prol do desenvolvimento humano.

Vivendo e aprendendo a jogar
Entre as entidades que integram o REMS está o Instituto Compartilhar, idealizado em 2003 por Bernardo Rocha de Rezende, mais conhecido como o técnico Bernardinho da seleção brasileira de vôlei. “Bernardinho sempre acreditou que a grande transformação aconteceria na escola”, explica Luiz Fernando Nascimento, o Nando, gerente-executivo do instituto. Com base nessa crença, eles desenharam uma estratégia inovadora e levaram o vôlei para as escolas públicas, com aulas no contraturno e o envolvimento de professores da própria rede de ensino. “Queríamos que a escola fosse reconhecida como a célula de transformação”, diz Nando.

Ponto para eles: o plano deu certo e hoje o Compartilhar atua em vários estados (Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Norte), tem 41 núcleos e atende aproximadamente 4 mil crianças e adolescentes. Não são apenas os estudantes que ganham com essa iniciativa. Ao longo dos 11 anos de existência do instituto, Nando observa que a prática do vôlei, no formato desenvolvido por eles, contagia os professores de sala de aula, a direção das escolas e as famílias, que se surpreendem não apenas com o desempenho dos alunos em quadra, mas também com novos padrões de comportamento que se refletem em outros ambientes. “Nosso projeto é muito mais do que jogar bola”, destaca Nando. “Usamos o esporte como pano de fundo para ensinar a ganhar, perder, arriscar e tomar decisões, tarefas que são difíceis de realizar na vida real”.

Quem convive com Michael Jackson Júnior, de 15 anos, percebe as mudanças. Ele era agressivo, problemático dentro e fora da sala de aula, sem nenhum controle. “Sabia que ele vivia numa situação de risco”, conta Luciene Rodrigues Soares, educadora e vice-diretora aposentada da Escola Municipal Monsenhor Joaquim Honório, em Natal, no Rio Grande do Norte, onde conheceu Michael. Há dois anos, ao perceber que ele gostava de esportes, Luciene convidou o menino para ir ao instituto. Ele aceitou imediatamente e foi recebido pelo professor Simplício Silva, que, embora diante de um garoto indisciplinado, acolheu-o e atribuiu a ele responsabilidades.

Michael conta que era tão nervoso que chegava a chorar de raiva e brigava, principalmente quando o chamavam por apelidos. “Me ofendiam tanto que eu não queria mais ir à escola e fui até reprovado por faltas”, lembra o garoto, cuja atitude mudou e, como consequência, os xingamentos pararam. Hoje ele tem autoestima, ajuda a avó nos afazeres, nas horas vagas auxilia seu Ernani, dono de uma loja de tintas, quer fazer supletivo (está ingressando no 7º ano), sonha em estudar Letras, porque gosta das músicas americanas, e frequenta o instituto graças à dedicação de Luciene, que o leva semanalmente às aulas. A educadora aposentada ainda supervisiona os estudos de Michael, aconselhando-o e acompanhando-o em todos os sentidos. “Ajudar esses meninos não deixa de ser magistério”, acredita.

Mais do que uma válvula de escape
No Instituto Reação, associação criada também em 2003 pelo judoca medalhista Flávio Canto, na comunidade da Rocinha, no Rio de Janeiro, é comum que mães, escolas ou órgãos tutelares encaminhem adolescentes ao programa devido a mau comportamento. “Esse tipo de pensamento mostra que pais e educadores têm consciência de que o esporte ajuda”, explica Joana Passos Miraglia, psicóloga e coordenadora-executiva do instituto. Por treinar atletas de alto rendimento, muitos procuram o Reação com o objetivo de ver os filhos vencendo na vida por meio do esporte. Exatamente como aconteceu com Rafaela Silva, que nasceu na Cidade de Deus, pisou nos tatames do Reação com 8 anos e, depois de muita luta, conseguiu o título de primeira mulher campeã mundial de judô do Brasil.

Os números, no entanto, provam que ser campeão não é para todos. Entre mil alunos matriculados no instituto, sete integram a seleção brasileira de judô. Para Flávio Canto, porém, o maior objetivo é transformar vidas e formar vencedores fora do tatame. Por isso, o instituto equilibra exercícios técnicos e táticos da modalidade com atividades de desenvolvimento humano. Joana Miraglia vê no judô um instrumento privilegiado para trabalhar a educação integral, por ter princípios tradicionais de valorização, respeito e disciplina.

Atualmente, o instituto está inserido em cinco polos carentes do Rio de Janeiro e reúne histórias bem-sucedidas. A psicóloga lembra-se de João Lucas, um rapaz que tinha dois sonhos: construir um quarto para os pais, já que dormia na sala, junto deles, e ser advogado, aspiração que substituiu o objetivo de ser faxineiro como o pai. Hoje ele comemora a reforma da casa e o ingresso na faculdade de Direito. Quem entra no instituto participa das oficinas de arte, ciência e tecnologia. Os alunos que se destacam têm chance de bolsas de estudos em escolas e universidades particulares. “Um dos nossos desafios é promover interação entre as classes sociais através do esporte”, explica a coordenadora. “Dessa forma, também lutamos contra a desigualdade”, acredita.

Ao mesmo tempo em que o esporte pode ser uma ferramenta poderosa de integração, sociabilidade e desenvolvimento pessoal, Felipe Pitaro, coordenador pedagógico da Gol de Letra, ONG criada em 1998 pelos ex-jogadores de futebol Raí e Leonardo, alerta para o perigo de se ver o esporte como uma tábua de salvação para todos os problemas. “Se não for usado da maneira correta, o esporte pode gerar frustrações, porque nem todo mundo vai ser um Neymar”, adverte. “A educação física e o esporte não são atividades prazerosas por natureza. Elas demandam esforços, habilidades específicas e evidenciam o corpo, que é uma propriedade muito particular de cada um”, observa.

O especialista explica que o esporte mal-orientado pode trazem problemas físicos e afetivos. Além disso, alerta que o prazer é um elemento individual e o gosto pela prática esportiva não atinge todas as pessoas. “Essa ideia de que o esporte faz bem é quase um mito”, diz Pitaro. Diante da complexidade que envolve o tema, as aulas da Gol de Letra partem de uma conversa com o grupo, durante a qual as funções de cada participante são acordadas, ou seja, todos participam, mas em funções nas quais se reconheçam. “Acreditamos que o currículo é um orientador, mas ele precisa ser discutido, vivido, atribuído, e não imposto. Para nós, isso é educação integral.”

Alunos entre 7 e 14 anos que ingressam no programa sabem que não estão ali simplesmente para “bater uma bola”. Os encontros envolvem atividades de expressão oral e escrita, culturais, artísticas, corporais e esportivas. Assim, todos têm acesso a uma variedade de práticas para que possam escolher o que realmente gostam. Foi o que aconteceu com Laura Maria Araújo Bernardo, que ingressou na unidade do Caju, no Rio de Janeiro, com 10 anos, participou de tudo e hoje, com 15 anos, é monitora.

Laura conta que está mais segura e confiante. “Eu não conseguia expor minhas opiniões, me deixava levar muito facilmente e também era estourada”, relata. “Aprendi a me impor e a lidar com as situações.” Lucas Toquer dos Santos Clementino, 16 anos, também colhe os frutos de ter frequentado a ONG. Ele lembra que ia forçado pela irmã, que viu na Gol de Letra uma alternativa para não ficar à toa. Se, no início, para ele era um engodo deixar os amigos da rua para participar das atividades, hoje pensa de maneira diferente. “Aqui é a minha segunda casa”, define o garoto, que também é monitor e frequenta a Gol de Letra para estudar e fazer pesquisas escolares. Lucas e a Laura destacaram-se na fundação e foram escolhidos para um intercâmbio na França. “Estou ansioso, pensando em como vai ser”, conta Lucas, que mora na comunidade carioca do Caju. “Nunca saí do Rio de Janeiro, agora vou para São Paulo e França. Minha irmã tá felizona!”.

Os benefícios do esporte despertam os sonhos até mesmo de quem nasceu cercado de cuidados, afeto e oportunidades. Pedro Araújo tem 15 anos, estuda em um colégio particular de São Paulo, cresceu vendo o pai, Henry Araújo, jogando tênis no clube e, desde os 8 anos, pratica a modalidade. Como o esporte por si só não resolve todos os problemas, foi na escola da tenista Suzana Silva, atleta e treinadora, que tem uma metodologia voltada para a educação integral, que o adolescente virou o jogo em apenas seis meses de treino. “Antes eu pensava em ser jornalista ou advogado, agora já me questiono se não posso ser mais”, diz Pedro ao levantar à hipótese de abraçar o esporte como profissão.

O pai observa que ele está mais extrovertido, seguro, motivado, tem mais iniciativa e está administrando melhor suas escolhas. Suzana Silva, que contribuiu para a transformação de muitos adolescentes além de Pedro, atua em duas escolas particulares de São Paulo. Em uma delas, o projeto de levar o tênis aos alunos deu tão certo que a direção inseriu as aulas no currículo, em vez de oferecê-las apenas no contraturno. “O esporte ajuda quando vai além da imposição de regras e é capaz de levar à reflexão”, afirma Suzana.

Link para a matéria original no site da revista: bit.ly/1rrApx2

Veja também

Pular para o conteúdo