EDUCAÇÃO PELA AVENTURA: qual é o mundo que queremos? por Fabiana Pereira

INTRODUÇÃO

“Responsabilidade, cuidado e solidariedade poderão estabelecer um patamar mínimo para que alcancemos um padrão de comportamento que seja humanitário”.
Leonardo Boff

As especulações sobre o Calendário Maia e seu prognóstico sobre o “fim do mundo”, de modo bem simplista, dividiram a sociedade em dois lados: aqueles que acreditam e aqueles que não acreditam em que o mundo vai acabar. Entre os que acreditam, existe uma vertente que defende que o fim do mundo como nós o conhecemos é que está próximo. O que se aproxima, na verdade, é o fim de um ciclo e, com ele, a possibilidade de um recomeço: a construção de um mundo melhor.
Se teremos a oportunidade de construir um outro mundo, melhor, chego à pergunta: mas, afinal, qual é o mundo que queremos? E como podemos contribuir para construi-lo?
Provocada por esta reflexão identifiquei que a educação pela aventura tem um potencial, talvez ainda pouco explorado, para inspirar a construção do projeto de sociedade que almejo. Apoiada, principalmente, na Carta da Terra e em outras referências, apresento nesse artigo um caminho que espero que inspire educadores e aventureiros curiosos!

A crise que afeta todas as sociedades do mundo

Leonardo Boff2, em palestra em que discutia “A Ética e a Formação de Valores na Sociedade” 3, afirmou que as sociedades do mundo estão vivendo uma crise estrutural, que atinge os fundamentos da civilização que construímos nos últimos séculos: hoje, globalizada.
Ele divide esta crise em 3 eixos fundamentais: apartação social, sistema de trabalho e alarme ecológico. O primeiro refere-se à pobreza, em que o risco é que a sociedade aceite essa apartação como algo inevitável, levando à percepção de que os laços de cooperação e solidariedade são mínimos em todo o mundo. O segundo diz respeito à crise de emprego, decorrente da hegemonia do capital especulativo sobre o capital produtivo; em que prevalece a competição, e não a cooperação, na lógica da economia mundial. E o terceiro, trata da forma como a espécie humana vem ocupando o planeta, tão voraz, que este já ultrapassou sua capacidade de resistência e regeneração.
Diante disso, Boff levanta alguns desafios que passam sempre pelo como: como trazer mais justiça e garantir a inclusão social dos apartados? Como passar de uma sociedade de pleno emprego para uma de plena ocupação, em que o ócio torna-se criativo, surgindo uma nova forma de interpretação do trabalho? Como estabelecer uma nova relação com a natureza, em que o desenvolvimento se faça com ela e não contra ela?
Frente a tantos “comos”, surge uma outra inquietação, referente ao o quê. O que é que estamos buscando? Qual o projeto de sociedade que almejamos? Antes de definir o caminho que iremos percorrer para chegar lá, é preciso definir onde é esse tal lá!

O mundo que queremos ver

“Seres humanos e Terra comparecem juntos diante do
futuro. E juntos devemos encontrar uma solução que seja
justa, que garanta a sustentabilidade”.
Leonardo Boff

Inspirada pela Carta da Terra e pelas palavras de Boff, pude destacar alguns princípios universais para a caracterização do mundo que podemos, como sociedade, construir.
Respeito: cada forma de vida tem valor. Respeitamos todos os seres humanos e demais seres vivos que habitam o mundo; garantimos os direitos humanos, suas individualidades e liberdades fundamentais, de forma a proporcionar a cada pessoa a oportunidade de realizar seu pleno potencial, e prevenir os danos ao meio ambiente.
Cuidado: vislumbramos um mundo em que o cuidado é a essência do ser humano. O cuidado consigo, com seu corpo, com sua vida, com o seu futuro, com os outros (estejam eles próximos ou distantes), com a natureza, com os ecossistemas…; desenvolvendo, assim, uma atitude protetora e amorosa para com a realidade em que vivemos.
Solidariedade: valorizamos na interdependência entre os seres. Dessa forma, uma sociedade só funcionará se criar laços de cooperação e inclusão, em que cada um coloca-se à disposição do outro, reunindo esforços nas soluções de desafios comuns. A colaboração esta presente em assuntos que vão além da responsabilidade individual, mas que contribuem para o desenvolvimento do todo.
Tolerância: exultamos a multiplicidade como característica marcante da vida. É por meio do intercâmbio entre diferentes pessoas, experiências e culturas que a vida se faz. Por isso, defendemos a equidade: disposição para reconhecer, imparcialmente, o direito de cada um; respeitando o outro, tolerando as diferenças e aprendendo com elas; de forma a garantir uma conviência pacífica e harmônica entre todos.
Responsabilidade: defendemos atitudes justas e cautelosas, em que a nossa ação não seja destrutiva e sim benevolente; ajudando a conservar, expandir e irradiar a vida. Nesse sentido, acreditamos que ser responsável é dar-se conta das conseqüências de nossos atos. Pensar, avaliar e pesar resultados antes de agir torna-se, então, imperativo.
Foi assim, então, que dei o primeiro passo em busca do “o quê?”, do mundo que quero (e espero que não só eu) ver … Mas, e agora, como chegamos lá?

A educação pela aventura e sua contribuição para a formação de valores

A educação pela aventura oferece caminhos para este mundo de respeito, cuidado, tolerância, solidariedade e responsabilidade. Ao promover o aprendizado sobre si mesmo e sobre o mundo, privilegiando uma metodologia de aprendizagem experiencial – ao ar livre, cercada por um cenário natural em áreas remotas -, utiliza todos os sentidos do indivíduo, dando ênfase aos relacionamentos entre as pessoas e os recursos naturais. É um processo em que os indivíduos constroem conhecimentos, aprendem técnicas e desenvolvem valores por meio da experiência direta.4
Todo esse processo acontece em um contexto de expedição, em que o grupo passa a viver em uma “mini-sociedade”, recém-formada, afastada da realidade social em que vive habitualmente, uma vez que se encontra em ambientes remotos na natureza. A cadeia de ações desta nova sociedade, por sua vez, é bastante simples, considerando que as responsabilidades do grupo estão focadas em deslocar-se, encontrar pontos de acampamento que garantam um bom descanso, buscar água para reabastecimento, alimentar-se, cuidar do lixo e outros dejetos. Como não existem interferências externas, a não ser aquelas derivadas do convívio com o mundo natural, o grupo deve criar suas próprias normas e regras de convivência para garantir o bom funcionamento de sua “mini-sociedade”, bem como a sua segurança.
Diante deste contexto, a cooperação entre os integrantes do grupo – o trabalho em equipe – torna-se fundamental para o sucesso da expedição5. Se pensarmos que é no relacionamento com os outros que a pessoa vê-se obrigada a ser coerente em seu discurso, esse pode ser contabilizado com o primeiro aprendizado de valores da expedição. Isso porque o indíviduo só se conhece por meio de sua relação com o outro. É a partir dessa relação que aprende a agir com objetividade e responsabilidade, uma vez que deve considerar tanto a sua pespectiva, quanto a dos demais, na tomada de decisão.
Tomar decisões, por sua vez, exige mais do que um julgamento das diferentes perspectivas; o que nos leva ao segundo aprendizado: a iniciativa individual. Cada integrante deve transformar seu julgamento em ação e é apenas na experiência concreta (e não no dilema moral), que oportunidades para tal se apresentam. Como, por exemplo, se apenas uma parte do grupo esforça-se para montar as barracas, isso não está correto e caso nenhuma ação seja tomada para resolver o problema, conflitos podem emergir da situação.
Outro aprendizado decorrente da educação pela aventura é a oportunidade de adquirir conhecimento sobre si mesmo. Reconhecer os próprios limites e perceber seus pontos fortes e fracos é sinônimo de respeito consigo mesmo e com o próximo. Essa barreira funciona como um indicador de responsabilidade, pois ao respeitar seu próprio limite, o indivíduo faz-se responsável por seus atos, garantindo sua integridade e a dos demais integrantes do grupo.
Agir com responsabilidade remete-nos, então, a um novo aprendizado: a importância do cuidado com o outro durante a experiência vivida. Ter consciência de seus limites, ajuda as pessoas a identificarem que outros têm limites também e que estes podem ser diferentes dos seus. Portanto, é importante cuidar para que todos estejam dentro de suas capacidades e caso isso não aconteça, apoiar um ao outro faz-se necessário. Nesse momento, a individualidade dá lugar à ajuda mútua, à compaixão, à solidariedade.
Por último, o tema da justiça, que caminha de mãos dadas com a solidariedade. Redistribuir o peso das mochilas, por exemplo, é uma questão de cuidado com o outro ou, primordialmente, de justiça? O integrante do grupo menos robusto não teria o direito de carregar menos peso? Em casos como este, a igualdade não representa a justiça; isto é, o justo não é tratar todos da mesma forma, mas sim com equidade, em que cada um responde de forma proporcional a suas limitações e/ou potencialidades.

CONCLUSÃO

Assim, observo que desenvolvimento de valores por meio da educação pela aventura pode ser um caminho valioso (e divertido) para alcançarmos o mundo que queremos. Utilizando-se de vivências concretas, proporciona momentos reais para que coloquemos em prática o convívio em comunidade, cientes de que nossas decisões mais simples desencadeiam conseqüências imediatas.
Trabalhar em grupo, agir com responsabilidade, cuidar de si e do próximo são alguns dos valores que esta proposta educacional estimula. Além disso, o indivíduo é provocado a conhecer seus limites, a relacionar-se com a natureza, a viver em uma nova sociedade, construindo com o grupo normas, regras e atitudes que vão pautar o mundo pelo qual querem estar rodeados.
Entendo, então, que a educação pela aventura oferece campo de oportunidades relevante para os profissionais que trabalham com educação. A proposta, ainda pouco explorada no Brasil, tem potencial para contribuir com a educação para valores e permear todos os momentos em que esta aparece: na escola, na família e na sociedade como um todo.
Difundindo esta ideia e desenvolvendo educadores para trabalhar neste campo, nossa sociedade dá passos importantes para a construção dessa sociedade mais justa e solidária que buscamos.

1 Fabiana Pereira é atleta de aventura, amante da vida ao ar livre e gestora social que investe e estuda a educação experiencial ao ar livre. Atualmente, é coordenadora de projetos do Instituto Asas (www.institutoasas.org.br). Este artigo, é fruto de uma reflexão pessoal da autora, porém inspirado pela troca de idéias promovida no espaço do Laboratório em Pedagogia da Aventura que viabilizou encontro entre especialistas nas áreas de esporte, aventura, educação e esporte adaptado para reflexão e produção coletiva de conhecimento sobre estes temas.Os participantes dos encontros de 2012 foram: Elizabeth Mattos (USP), Fábio Silvreste (Fundação CSN), Paula Korsakas (PRODEH/USP), Rodrigo Bastos (OBB) e José Aníbal Azevedo Marques (Interação Esporte e Psicologia).

2 Leonardo Boff é um teólogo brasileiro, escritor e professor universitário, expoente da Teologia da Libertação no Brasil. É respeitado pela sua história de defesa pelas causas sociais e atualmente debate também questões ambientais. http://pt.wikipedia.org/wiki/Leonardo_Boff

3 A mesa-redonda Reflexões sobre a Ética e a Formação de Valores na Sociedade, realizou-se em 12 de junho de 2003, durante a Conferência Nacional 2003 — Empresas e Responsabilidade Social, do Instituto Ethos, no Novotel Center Norte, em São Paulo, SP: http://www.uniethos.org.br/_Uniethos/Documents/reflexao_11.pdf

4 Outdoor Education: uma alternativa para a educação ambiental (A Educação pelas Pedras: Ecoturismo e Educação Ambiental) – Barros, M.I.A. (2000)

5 Os valores citados neste texto foram extraídos do artigo de Kunreuther e Ferraz (2012): Educação ao ar livre pela Aventura: o aprendizado de valores morais em expedições à natureza

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